Ana Cristina Melo
escritora

Blog da Ana

Da escrita à edição: Prática #1

Escrita Criativa e Literária
Literatura
Livro Da Escrita à Edição

Da escrita à edição:
como alcançar o melhor na sua escrita literária

Dicas de escrita literária e dúvidas comuns no uso da nossa língua

 

Conforme prometido, vamos praticar um pouco do que sugeri no post anterior.


Vamos começar com a leitura de um trecho de um livro distópico clássico:

«Não havia lugar de destaque que não ostentasse aquele rosto de bigode negro olhando para baixo. Na fachada da casa logo do outro lado da rua, via-se um deles. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ, dizia o letreiro, enquanto os olhos escuros pareciam perfurar os de Winston. (…)

Ao longe, um helicóptero, voando baixo sobre os telhados, pairou um instante como uma libélula e voltou a afastar-se a grande velocidade, fazendo uma curva. Era a patrulha policial, bisbilhotando pelas janelas das pessoas. As patrulhas, contudo, não eram um problema. O único problema era a Polícia das Ideias.

Por trás de Winston, a voz da teletela continuava sua lenga-lenga infinita sobre o ferro-gusa e o total cumprimento — com folga — das metas do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Todo som produzido por Winston que ultrapassasse o nível de um sussurro muito discreto seria captado por ela.»

(1984, de George Orwell)


A obra de Orwell entrou em domínio público em 2021. 1984 é um romance distópico que traz um governo totalitário que controla até mesmo os pensamentos.

Vamos tirar algumas informações da técnica literária desse texto?

O trecho apresentado mostra nosso protagonista percebendo como o «grande irmão» está em todos os lugares. Mas de todos os controles que ele faz, o que é pior para Winston é o controle das ideias.

Apesar da história ser narrada em terceira pessoa, temos um narrador que mostra o ponto de vista de Winston.

Na primeira frase, a expressão «olhando para baixo» tem duplo significado, assim como o termo «duplipensar» que aparece mais tarde no livro. O grande irmão se põe como um ser superior (todos estão abaixo dele) que vigia (olha) toda a sociedade.

Reparem, agora, a dubiedade do último parágrafo.

A voz da teletela continuava uma lenga-lenga infinita.

«Infinita» aqui pode ter sido uma palavra escolhida para mostrar a amplitude desse poder. Porém, também nos diz que a informação passada pelo governo é desnecessária (visto que a meta será cumprida com tranquilidade), mas é reforçada incessantemente na mente da população.

O controle não é só do que o cidadão pensa, mas do que ele precisa pensar. Capta-se o que ele pensa, para ser criticado (e, principalmente, julgado), e injeta o pensamento manipulado no lugar.

O narrador também nos apresenta como são antagônicos os sons. Na teletela é algo constante, infinito. Já a fala do cidadão é percebida até num sussurro. Essa fala é também silenciada pela patrulha. Então, o governo tem uma voz potente e autoritária, enquanto Winston e os outros têm suas vozes silenciadas.

Este livro é atemporal. Basta olhar as redes sociais e veremos que temos “grandes irmãos” que desejam controlar até mesmo o que pensamos.

Avaliem outras palavras escolhidas pelo autor e tirem suas próprias conclusões. Na escrita de um bom livro, não existe escolha aleatória. Palavras, pontuações, parágrafos são também narradores, e podem ser caminhos inconscientes do autor, mas moldadas por sua experiência.

Eu sugiro uma reflexão sobre as palavras: ostentassem e perfurar.


Lembram das dicas do último post?

Leia de tudo. Autores clássicos e contemporâneos. Nacionais e estrangeiros.

Comecei com um exemplo clássico e agora vamos para um exemplo contemporâneo. O primeiro foi estrangeiro, o segundo, um nacional de minha autoria. Trata-se do meu romance “Delta: um comando para o tempo”.

Página 26 do livro Delta: um comando para o tempo, de Ana Cristina Melo

Pg 27 do livro Delta: um comando para o tempo, de Ana Cristina Melo


Vamos relembrar também outras dicas:

Entenda as técnicas literárias. Entenda também o nosso idioma e o que é possível fazer com ele. Não solte a mão da gramática e da ortografia. Marque palavras. Investigue os narradores. Perceba as escolhas dos autores. Mapeie a personalidade dos personagens.


Então, vamos começar por algumas escolhas/decisões que tomei neste livro.

Os principais elementos de uma narrativa são o enredo, o narrador, os personagens, o tempo e o espaço.

Espera-se, para um romance, que o enredo traga um conflito, pois é a partir deste que o desenvolvimento da história se sustenta. Este mesmo enredo pode ser linear, contado na sequência dos acontecimentos, ou não linear, com saltos de tempo, idas ao passado, ao futuro, etc.

No caso do narrador, não só escolhemos quem vai contar a história, mas precisamos identificar a voz desse narrador, qual o ponto de vista dele, qual o foco da narrativa.

No caso do tempo, podemos trabalhar de forma cronológica ou psicológica. Na primeira, temos uma sequência temporal, marcada pelo relógio/calendário. Na segunda, grosso modo, temos uma experiência interior do personagem, como, por exemplo, a narrativa da duração de um acontecimento, ou ainda numa narrativa que provoca saltos no tempo, com flashbacks e flashforwards. É muito comum que um enredo não linear misture o tempo cronológico com o tempo psicológico.

Voltando ao meu romance, a 1ª decisão que eu precisava tomar era quanto ao enredo. Considerando que havia um mistério na história, eu não poderia simplesmente contá-la de forma cronológica. Até porque isto seria chato para o leitor.

No livro Delta, temos um texto que fala sobre “viagem no tempo”. E  eu não poderia colocar a narrativa só no passado do Alex, se havia uma narrativa no futuro da Sarah. Então, decidi que o enredo seria não linear. Cada capítulo obedece um ponto no tempo de um personagem. Mas a sequência dos capítulos do mesmo personagem seguem um tempo cronológico. Confuso? Precisa ler o livro para entender. kkkk Usei os elementos a serviço da minha forma de narrar, para que eu pudesse revelar a história no momento certo. E já implantei esta ideia em um prólogo.

O prólogo, em geral, é um elemento de um texto narrativo que indica alguma passagem da história que elucida o que será contado (algo do passado) ou prenuncia a tensão da narrativa (algo do futuro).

Gosto muito de usar este recurso nos meus livros. Tanto o prólogo quanto o epílogo (seu inverso, que fecha a narrativa, apresentando algo que se passa no futuro após o ponto final).

E eu precisava contextualizar a relação de uma das protagonistas, Sarah, com outros personagens importantes para a história. Então, decidi criar o prólogo contando desde a infância dela até o momento que ela retorna ao Brasil. E, em paralelo, conto a história do Jeromy Brown, um personagem relevante. Para dar a ambientação tecnológica, aproveito e pincelo algumas notícias da evolução da informática.

Contudo, como eu iria fazer isso, sem parecer forçado? Criei notícias de jornal, revistas e sites, misturados com uma única narrativa que mostra o momento em que eles se conhecem. Abaixo, uma das páginas do prólogo.

Página 17 do livro Delta: um comando para o tempo, de Ana Cristina Melo

 

Continuando a pensar na forma do enredo, cada parte do livro é narrada sob o ponto de vista de um intervalo temporal na vida dos personagens.

Na Parte 1, designada “Passado”, temos o momento no passado em que Alex e Sarah se conheceram virtualmente, além das experiências de Sarah que a conectaram com Jeromy.

Nos capítulos 1 a 8, os de Alex são narrados em novembro de 2012. Os de Sarah são narrados em novembro de 2013. Há uma exceção, que é o capítulo 6, narrado como diário de Sarah, de 1999 a 2009, quando ela fez intercâmbio nos EUA. É como se esse capítulo preenchesse lacunas do que foi apresentado no prólogo.

Na Parte 2, designada “Futuro”, temos uma mistura dos momentos de Sarah depois que volta ao Brasil com a tentativa de Alex de salvar Sarah desse futuro, onde ela será sequestrada.

Esta parte volta a mesclar gêneros literários. Se, no início, fiz uso de notícias de jornal/revista para ajudar a contar a história, aqui faço uso do diário de Sarah, mas também de trocas de e-mail, dela com sua host sister, dela com Carlos, e do Alex com o Rui. Toda esta técnica me permitiu avançar no tempo, contando detalhes essenciais, sem ficar parecendo um boneco saltando obstáculos em um jogo de videogame kkkk.

Na Parte 3, designada “Presente”, juntamos os dois protagonistas no futuro de Sarah. O enredo, agora, segue uma cronologia linear, ora do ponto de vista dele, ora do ponto de vista dela, como se fossem peças de quebra-cabeça que bailavam até se encaixar.

Outro recurso narrativo que gosto de usar é a epígrafe. No caso, tem uma para cada parte do livro. Na parte 1, a frase é de George Orwell. Perceberam a ligação? 🙂 Para quem não sabe, epígrafe é uma frase que colocamos no início de um livro ou de um capítulo, que apresenta a temática do que será abordado, ou mesmo indicar qual foi a motivação da obra.

Quem controla o passado, controla o futuro.
Quem controla o presente, controla o passado.
(George Orwell)

A próxima decisão estava em quem seria o narrador deste livro. Para que eu pudesse mostrar a personalidade de cada personagem, era preciso que eles interagissem com os outros. Mas isso não ia acontecer, na maior parte do tempo. Então, decidi criar um narrador em terceira pessoa, com o ponto de vista de cada um. Ou seja, ele não seria onisciente. E, muitas vezes, uso a “falsa terceira pessoa”, que é olharmos para o texto e esquecermos que ali existe um narrador, tão próximo do personagem que estão as passagens, que achamos que está sendo narrado em primeira pessoa.

No capítulo do Alex, o narrador só narra o que o Alex vê ou sente. Idem para o capítulo da Sarah. No exemplo acima, da página 26, veja esta frase:

“Precisava trocar aquele miolo, antes que um dia ficasse preso do lado de fora ou do lado de dentro, o que seria bem pior”.

Parece um pensamento dele, certo? Essa é a ideia.

Vamos olhar agora outra frase:

“Bem diferente de seu melhor amigo Rui, sempre circulando pela noite carioca e atraindo todo tipo de aventura perigosa”.

Os romances, normalmente, trazem um protagonista na sua vidinha, até que são provocados por algum conflito, entram numa jornada, e saem modificados. É a tradicional Jornada do Herói.

Aqui, o Alex era o cara caseiro, que só trabalhava. E o amigo era o cara da noite, que só atraía aventura perigosa. A ironia é que a Sarah aparece para o Alex exatamente à noite. E, a partir daí, ele é provocado, e convocado por seus sentimentos, a salvá-la, se envolvendo numa aventura muuuuito perigosa. 🙂

Da mesma forma, começo o parágrafo seguinte “Com alguma sobriedade,”. Ele não bebeu, ele está “bêbado” de sono, de cansaço. É mais uma comparação entre ele e o amigo.

A frase “A luz do corredor se precipitou, iluminando a desordem da sala” fala da sala do apartamento, sim, mas também fala da vida dele. Sarah mexeu com ele, foi como uma luz que mostrasse a desordem da sua vida.

Na página 27, apresento um pouco da personalidade do Alex, alguém que convivia com a diferença, com a bagunça, com a divergência de opiniões, fossem profissionais, políticas ou de religião, e tudo bem.

Este livro começou a ser escrito em novembro de 2012, com o título provisório de “Código para o futuro”. E coloquei o ponto final em maio de 2016. Olha que nessa época nem vivíamos ainda a polarização da sociedade.

 


E aí, gostaram?
Então, te espero no próximo post.

 

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